juntos

isto é uma foto
impossível
não posso fazer
não posso negar
mas gravei, na mente

dormiu em meu peito
virou-me do avesso

o cigarro acendi
ventilador assoprou
fumaça
em você
percebi-te com frio
desliguei

e vi
teu sono pesado
foi terno

respiras
inspiro

momento eterno
ao te observar
não posso provar
brilhou-me o olhar

ah, e por fim
suei
ventilador religuei
no mínimo
o máximo pra você
o mínimo pra mim

o sono dos justos
juntos
tivemos, temos, teremos

gozo

você
em riste me prosta sob ti
engana meu tato incauto
e some enquanto disfarço

e eu
ainda que de burca estivesse
exalaria pelas brechas o suor
o cheiro de gozo que me desce

Só um passinho

I have a dream. Eu tenho um sonho. Sonho em descobrir quem foi o cobrador gênio que proferiu pela primeira vez a já célebre (e enfadonha) frase “só um passinho”. Sonho encontrá-lo por aí. De preferência, dentro de um ônibus bem lotado. No calor. Chovendo. Com as janelas fechadas. Cheio de gente de saco cheio e cheia de sacolas.

“Só um passinho.”

Essa frase brilhante se espalhou com tamanha destreza que chego a acreditar que estes bípedes portadores de síndrome do pequeno poder têm razão e, de fato, ônibus são como coração de mãe: sempre cabe mais um.

“Só um passinho.”

Porque, sem dúvidas, nos recusamos a dar mais um passinho porque não queremos trocar de encoxadas. Convenhamos: temos um baita trabalho pra conseguir encoxar alguém (ou ser encoxado) e, quando a intimidade está próxima de chegar, gritam a bendita frase, como se fôssemos uma quadrilha de festa junina na hora de trocar de par. Assim não dá. Relacionamentos líquidos têm limites: queremos vínculos!

“Só um passinho.”

Afinal, nosso objetivo secundário (lembrando a prioridade das encoxadas) é atrapalhar a passagem de outros passageiros. É maldade mesmo. Freud disse. Nietzsche também. Somos maus, pô. É super possível abrir espaço para aquele colega que pretende chegar à porta nos dois segundos que lhe restam, após perceber segundos antes da parada que (creiam!) chegou seu ponto. Se não der para passar pelo lado, vai por cima, “só um pulinho”, talvez. Ou por baixo, abre as pernas, quem sabe rola um chamego? Super possível, mas somos inerentemente maus. Queremos atrapalhar todo mundo mesmo.

“Só um passinho.”

Até porque, não importa se fomos até o ponto final para viajar confortavelmente. Nossa obrigação ética (moral e o escambau) é abrir alas para o amiguinho que pegou o bonde andando e quer sentar na janelinha. “Só mais um degrau pra fechar a porta”, diz, sorrindo, o simpático motorista. Homem de bem (mulheres são raras, por que será?), jamais andaria com as portas abertas. Preza pela nossa segurança. Pena que no degrau de cima já encontram-se 234 pessoas (talvez 233, estava meio atordoado) e não dá pra subir. “Só saio quando conseguir fechar a porta”. Mas não é um gentleman este motorista? Cabe aos passageiros se entucharem só mais um pouquinho. Quem precisa de dignidade?

Água corrente

A gata quer água corrente. Sequer olha para sua tigelinha sempre cheia de água fresca. Vai ao tanque. Discreta? Jamais. Miados e miados depois, seu escravo, aquele humano que cuida dela, aparece para ver do que se trata. A cena é autoexplicativa. Explícita. “Abra a porra da torneira e saia daqui”. Resta apenas uma dúvida: satisfaço este desejo e foda-se o planeta ou deixo-a lá, regurgitando no chão, temendo sua morte lenta e dramática por sede e inanição.

Nem hesito: foda-se o planeta.

transbordo

estou em você
      em trinta segundos
       me perco
transbordo

além

tu sobre meu peito
põe-me sob puro efeito
de algo além

Carta de divórcio (ao cigarro, é claro)

Prezado cigarro,

Enquanto dou o derradeiro trago – imaginário, pois você não está mais aqui – inicio esta missiva. Olho para o chão e observo: última bituca (talvez penúltima). Encarando-me com olhos não de presente, mas passado. Acabou comigo e meu ego. Deixe o ponto final para mim. Suplico.

Ciente da minha incapacidade de resistir, optei pelo mais drástico. O fim registrado, em cartório. Extrajudicialmente notifico-te, meu pedido de divórcio. (Ir)revogável.

Depois de tanta fumaça, conversas intermináveis e trovões, os amarelos dentes da primavera viraram, do avesso. E a brisa boa, antes tesão, agora é engasgo. Desce ruim.

Tentei parar, mas nem a pinga, nossa companheira de prosa e tédio, deu conta da ausência. Ter-te em minha boca era consolo de tudo. De todos.

Teu tabaco, ali, com tantas outras substâncias químicas, ludibriava-me. E nem a massiva advertência, no teu rótulo, alertando-me da finitude, impediu-me de tragar-te até o fim. De mim.

Teu cheiro então, é foda. Não sai das mãos. Do corpo. Das roupas. Não tem banho que tire. E sei, por outros vícios, que cheiro fica. Impregna. Fecho os olhos, respiro fundo e bingo. Sinto.

Disseram-me na sarjeta para substituir um vício por outro. Ocupar aquele espaço, vazio. Relutei, confesso. Mas tem jeito? Morro aos poucos por ti e à partir de amanhã, caso aceite esse divórcio sem litígio, partirei, em busca de novos delírios.

Sobre a foto do menino morto

Normalmente, ignora-se as capas da Veja e tudo bem.
Revistinha de merda é revistinha de merda.
Toca o barco.

Soube da foto da criança morta.
Até parei de ler alguns feeds para evitar o desgosto de ver a cena.
Fui ajudado pelos amigos, que não compartilharam aquilo.
É a vida real? Claro.
Não devemos fugir da realidade? Jamais.
Mas esse tipo de imagem mata-me aos poucos.
Prefiro evitar.

Eis que a maldita revista coloca a foto em sua capa.
Espalha essa porra pela cidade.

Não pude evitar.
Morro aos poucos.

manifestações

incauto, desbravei a cidade
o metrô, contumaz preto trabalhador
hoje é branco (verde e amarelo), golpista
maldito eu.
que não permaneci em casa

ufanismo barato dói
me mata

Real Beleza [2015, Brasil, Jorge Furtado]

Ao ver nomes como Jorge Furtado na direção de um filme, é inevitável uma pausa para um olhar mais atento. Afinal, qualquer pessoa responsável pelos memoráveis Ilha das Flores (1989), O Homem que Copiava (2003), Saneamento Básico (2007) e, mais recentemente, O Mercado de Notícias (2014), é soterrada por altas expectativas. E como toda expectativa, diretamente proporcional é a chance de frustração.

Já na primeira parte do filme, levamos um tapa na cara junto com a modelo fotográfica e nos perguntamos se João (Vladimir Brichta), sendo apresentado como um desiludido e decadente fotógrafo, nos despertará mais compaixão ou ira, sentimentos não necessariamente isolados um do outro. A apresentação do personagem, aliás, uma cena que combina a interpretação muda e pesada de Brichta com efeitos geométricos de pós produção e uma trilha posta como luva, tem precisão cirúrgica.

Mas somos fisgados não apenas pelo protagonista. O elenco principal é composto por Maria (interpretada pela promissora Vitória Strada) – que vê no encontro com o fotógrafo sua única chance sair da pequena cidade natal e conhecer o mundo – e seus pais Pedro (Francisco Cuoco) e Anita (Adriana Esteves, esposa de Brichta, o que talvez justifique a inegável química entre os dois). Esta última, fadada a cuidar de um marido debilitado, põe seu amor à prova ao conhecer o enigmático João.

Tudo pronto para ser mais uma enfadonha história de amor e traição, quando somos surpreendidos com eficazes referências à grandes artistas e suas obras (Borges, Decameron, Don Juan, Cartier-Bresson). O pesar na voz de Pedro, ao dizer que as únicas belezas que ele deixará quando morrer (enquanto desejava ter criado músicas, quadros, livros, esculturas ou outras belas artes) seriam sua filha e biblioteca, parece catapultar a resposta de João: não é pouco. E não é mesmo. O filme tece uma delicada discussão sobre o que é, afinal, beleza.

O cigarro, que mais parece uma muleta narrativa desnecessária, está presente em quase todas as cenas de reflexão de João, como se fosse a única forma de demonstrar uma já evidente angústia e aflição. E a cena em que Maria se coloca como independente o suficiente – apesar de suplicar por ajuda – para tomar suas próprias decisões, lá está o cigarro novamente para reproduzir o estereótipo batido (e cuidadosamente construído por décadas e décadas de propagandas tabagistas em filmes hollywoodianos) que impõe o fumo como signo de maturidade e status.

No entanto, esta pareceu ser a única muleta usada pelo diretor, já que hipnotizados pela câmera focada nos rostos dos personagens, logo percebemos julgamentos morais e maniqueísmos colocados à prova, com diálogos tão monossilábicos quanto profundos. Além de silêncios que, acompanhados de olhares sutis, assumem papel de eloquentes discursos.

Em uma entrevista, Furtado atribui a seguinte frase a Ingmar Bergman: “não existe paisagem como o rosto humano”. Mesmo com uma natureza deslumbrante tentando pular fora da tela, o diretor brasileiro faz jus à máxima do sueco e mantém o foco nos rostos e expressões dos atores. E às vezes uma única palavra transborda-nos para um mar de possibilidades e significados. Como quando o assistente de João, ao conversar com o fotógrafo sobre a procura pela beleza diz achar a empreitada “incrível” e Brichta rebate: “incrível, essa é a palavra certa”.

In-crível: aquilo que não é crível. Não se toca. Não se vê. Não se acha.

A real beleza.

Uma dor

Mal o sinal soara e os alunos estavam em suas salas.
Menos ele.
Vinha decidido em minha direção.
Tia, tô com uma dor, liga pra minha mãe.
Dor onde? Dor de cabeça?
Barriga. É dor de barriga.
Respire, vá com calma ao banheiro, lave o rosto e venha até minha sala que tentarei falar com alguém na sua casa.
Uma vizinha viria buscá-lo, era a segunda opção de emergência no prontuário.
Tia, voltei.
Sua vizinha vem te buscar logo logo, você está melhor?
Não, tia. Tem que ser minha mãe. Ela tem que me buscar. Minha mãe.
Ela está trabalhando, não tem como vir agora.
Se não for minha mãe, tia, não precisa.
Você está passando mal ou não?
Pausa.
Aqueles olhos encheram-se d’água.
É saudade da minha mãe, tia. Eu quero minha mãe. Quero abraçar ela.
Pedi um minuto.
Dois.
Três.
Fui informada que o aluno morava com a avó.
Pelos relatos mais detalhados, vida dura.
Consegui falar com a mãe.
Expliquei a situação e passei o telefone.
Com os olhos cerrados, segurando uma lágrima que não consegui, ele apenas ouviu a mãe no outro lado da linha.
Ao fim, suplicou.
Tô com saudade, mãe. É só isso. Vem me buscar. Quero te ver. Tô morrendo de saudade.
A conversa parecia ter encerrado e assumi novamente a ligação.
A mãe, agora com voz embargada, garantiu estar à caminho.
Urgência é urgência.
E aquela dor, na tenra idade, não era dor.
Era amor.
De mãe.
Saudade.