Real Beleza [2015, Brasil, Jorge Furtado]

Ao ver nomes como Jorge Furtado na direção de um filme, é inevitável uma pausa para um olhar mais atento. Afinal, qualquer pessoa responsável pelos memoráveis Ilha das Flores (1989), O Homem que Copiava (2003), Saneamento Básico (2007) e, mais recentemente, O Mercado de Notícias (2014), é soterrada por altas expectativas. E como toda expectativa, diretamente proporcional é a chance de frustração.

Já na primeira parte do filme, levamos um tapa na cara junto com a modelo fotográfica e nos perguntamos se João (Vladimir Brichta), sendo apresentado como um desiludido e decadente fotógrafo, nos despertará mais compaixão ou ira, sentimentos não necessariamente isolados um do outro. A apresentação do personagem, aliás, uma cena que combina a interpretação muda e pesada de Brichta com efeitos geométricos de pós produção e uma trilha posta como luva, tem precisão cirúrgica.

Mas somos fisgados não apenas pelo protagonista. O elenco principal é composto por Maria (interpretada pela promissora Vitória Strada) – que vê no encontro com o fotógrafo sua única chance sair da pequena cidade natal e conhecer o mundo – e seus pais Pedro (Francisco Cuoco) e Anita (Adriana Esteves, esposa de Brichta, o que talvez justifique a inegável química entre os dois). Esta última, fadada a cuidar de um marido debilitado, põe seu amor à prova ao conhecer o enigmático João.

Tudo pronto para ser mais uma enfadonha história de amor e traição, quando somos surpreendidos com eficazes referências à grandes artistas e suas obras (Borges, Decameron, Don Juan, Cartier-Bresson). O pesar na voz de Pedro, ao dizer que as únicas belezas que ele deixará quando morrer (enquanto desejava ter criado músicas, quadros, livros, esculturas ou outras belas artes) seriam sua filha e biblioteca, parece catapultar a resposta de João: não é pouco. E não é mesmo. O filme tece uma delicada discussão sobre o que é, afinal, beleza.

O cigarro, que mais parece uma muleta narrativa desnecessária, está presente em quase todas as cenas de reflexão de João, como se fosse a única forma de demonstrar uma já evidente angústia e aflição. E a cena em que Maria se coloca como independente o suficiente – apesar de suplicar por ajuda – para tomar suas próprias decisões, lá está o cigarro novamente para reproduzir o estereótipo batido (e cuidadosamente construído por décadas e décadas de propagandas tabagistas em filmes hollywoodianos) que impõe o fumo como signo de maturidade e status.

No entanto, esta pareceu ser a única muleta usada pelo diretor, já que hipnotizados pela câmera focada nos rostos dos personagens, logo percebemos julgamentos morais e maniqueísmos colocados à prova, com diálogos tão monossilábicos quanto profundos. Além de silêncios que, acompanhados de olhares sutis, assumem papel de eloquentes discursos.

Em uma entrevista, Furtado atribui a seguinte frase a Ingmar Bergman: “não existe paisagem como o rosto humano”. Mesmo com uma natureza deslumbrante tentando pular fora da tela, o diretor brasileiro faz jus à máxima do sueco e mantém o foco nos rostos e expressões dos atores. E às vezes uma única palavra transborda-nos para um mar de possibilidades e significados. Como quando o assistente de João, ao conversar com o fotógrafo sobre a procura pela beleza diz achar a empreitada “incrível” e Brichta rebate: “incrível, essa é a palavra certa”.

In-crível: aquilo que não é crível. Não se toca. Não se vê. Não se acha.

A real beleza.

Uma dor

Mal o sinal soara e os alunos estavam em suas salas.
Menos ele.
Vinha decidido em minha direção.
Tia, tô com uma dor, liga pra minha mãe.
Dor onde? Dor de cabeça?
Barriga. É dor de barriga.
Respire, vá com calma ao banheiro, lave o rosto e venha até minha sala que tentarei falar com alguém na sua casa.
Uma vizinha viria buscá-lo, era a segunda opção de emergência no prontuário.
Tia, voltei.
Sua vizinha vem te buscar logo logo, você está melhor?
Não, tia. Tem que ser minha mãe. Ela tem que me buscar. Minha mãe.
Ela está trabalhando, não tem como vir agora.
Se não for minha mãe, tia, não precisa.
Você está passando mal ou não?
Pausa.
Aqueles olhos encheram-se d’água.
É saudade da minha mãe, tia. Eu quero minha mãe. Quero abraçar ela.
Pedi um minuto.
Dois.
Três.
Fui informada que o aluno morava com a avó.
Pelos relatos mais detalhados, vida dura.
Consegui falar com a mãe.
Expliquei a situação e passei o telefone.
Com os olhos cerrados, segurando uma lágrima que não consegui, ele apenas ouviu a mãe no outro lado da linha.
Ao fim, suplicou.
Tô com saudade, mãe. É só isso. Vem me buscar. Quero te ver. Tô morrendo de saudade.
A conversa parecia ter encerrado e assumi novamente a ligação.
A mãe, agora com voz embargada, garantiu estar à caminho.
Urgência é urgência.
E aquela dor, na tenra idade, não era dor.
Era amor.
De mãe.
Saudade.

#PrecisamosFalarSobrePodcasts

Sou ouvinte de podcasts há bastante tempo. Acho que os primeiros que ouvi foram o Semana Tech e o Guanabara.Info, que nem existem mais. Cheguei a ter o meu próprio (Negação Lógica, falávamos de política, e fico constrangido, hoje, ao constatar como éramos fracos) que precisamos matar por conflitos de tempo/agenda.

Enfim, percebi ter vários amigos aqui nessa internet sem sequer saber o que é podcast e, portanto, é minha obrigação apresentar. Porque assim, sério, você precisa conhecer. Tem uma porrada de conteúdo bom, do seu interesse, que você está perdendo. E não é esse monte de ruído da internet. Nem vai gastar seu tempo, você pode conciliar com um passeio de bicicleta, uma ida à academia, em trajetos casa/trabalho/qualquer lugar, dentro do carro ou no busão/metrô com fone de ouvido. É tipo ouvir música ou rádio. Só que mais legal. Ou não.

Mas tio, o que é podcast? É um programa, em áudio. Você assina e recebe sempre que um episódio novo é lançado. Já foi mais difícil ter acesso à eles. Hoje, em tempos de smartphones sempre conectados, basta instalar um aplicativo de sua preferência (tem pra Android, iPhone, Windows Phone, qualquer um), procurar pelos programas que te interessam e clicar no botão de assinar. Você pode configurar, é claro, para receber um aviso quando saírem episódios novos e baixar apenas se o tema te interessar.

Eu assino uma caralhada de programas, mas vou indicar só uns 10 por motivos de: já virou textão. Eis eles.

O Norte: como se já não bastassem os excelentes textos do Oene, os caras resolveram fazer um portcast direto do norte (da América) discutindo diversos assuntos e colocando em perspectiva as realidades do Brasil e dos Estados Unidos.

AntiCast: um dos meus preferidos, era para ser um podcast com a visão dos designers sobre o mundo, mas é muito mais do que isso. Com uma dose certa de seriedade e bom humor, arte, cultura, filosofia e temas como estes estão sempre em pauta.

A Voz de Delirium: entre os podcasts brasileiros, o formato storytelling ainda é raridade. Esse é uma dessas raridades. É um programa de rádio simulado de uma cidade fictícia chamada Deliruim, onde as coisas mais estranhas acontecem.

BrainCast: dessa minha lista, acho que é o mais antigo e “tradicional”. É tocado por um pessoal que domina muito bem os assuntos do momento. Criatividade, comunicação, entretenimento e internet são palavras que estão em uma boa descrição do que eles fazem.

Cine Masmorra: muita reflexão e diversão para quem gosta de cinema independente. Já descobri muitos filmes incríveis com as dicas deles.

Cinema em Cena: mais um podcast de cinema. Sem demérito. É um dos melhores. Têm séries de programas que destrincham obras de vários ótimos diretores como Lars von Trier, William Friedkin, Hayao Miyazaki, Copola, Andrei Tarkovsky e vários outros. Além dos episódios regulares que sempre discutem bons filmes.

Escriba Café: ninguém falava em storytelling no Brasil e o Escriba Cafe já produzia episódios inacreditáveis de tão bem feitos. Tenho medo de não saber descrever bem do que se trata. Simplesmente ouça.

Fronteiras da Ciência: físicos, biólogos, professores e os mais qualificados convidados da UFRGS tentam trazer os temas complexos da ciência para um vocabulário que nós leigos entendamos. No que se refere à divulgação científica, não conheço nada tão bom entre os podcasts brasileiros.

Guia Prático: tecnologia e informática, a versão em áudio do blog Manual de Usuário.

Isso é muito Tarantino: programa bem interessante. Um bate papo entre amigos em trajetos de um lugar para outro, em mesas de bares/ restaurantes, ou qualquer lugar desses em que conversamos com nossos amigos. Os papos são divertidos e o fato de não ter muita edição, ser uma conversa mais “crua” deixa a coisa bem bacana.

Mamilos: de longe, a mais feliz surpresa de 2015. Os assuntos mais polêmicos discutidos pelas ponderadas Cris Bartes e Juliana Wallauer em uma mesa cheia de amor e discordâncias. O que elas fazem é inédito. Nos faz pensar sobre tudo, nos colocando no nosso lugar e no lugar do coleguinha.

Não Obstante: esse é hard. Discussões filosóficas e acadêmicas principalmente para quem (mas não só) se interessa por arte e design.

Papo de Fotógrafo: excelente bate papo sobre fotografia, várias vezes com convidados especialistas.

Revista Piauí: pequenas pílulas em áudio sobre alguns artigos ou poemas da revista piauí.

Um Milkshake Chamado Wanda: conheci ontem. Ainda não entendi o nome, mas entenderei. Trata-se de um bate papo descontraído sobre vários assuntos da cultura pop. Fazia tempo que não ria tanto ouvindo um podcast.

We Can Cast It!: este anda em hiato, não sei quando volta, mas copiando a descrição do próprio site delas, é um podcast feminista sobre cultura pop, livros, filmes, quadrinhos, polêmicas e tudo o mais que couber em 30 minutos. Bom para ajudar as minas no empoderamento de cada dia e colocar a gente no nosso cantinho da disciplina.

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É sério, dê uma chance para os podcasts. Se tiver dificuldade, me dá um toque, eu te ajudo.

E se você já sabe o que é, já ouve, conhece bem mais do que eu, melhor ainda! Aproveite para indicar aí na sua ~rede social~ seus programas favoritos.

É isso.

(publicado originalmente no medium)

abu

nos dizia
em pêsames
que morte boa
não havia

fadados estávamos
ao leito (relento)
canos nas narinas
aparelhos de sobrevida
sofrimento

mas ele
o próprio
ao morrer
nos provoca
numa ironia atroz
certeira:

morre dormindo
em paz

te amo

cansei
de segurar “eu te amo”
fingir não amar
quando amo

cansei
das pessoas
dizendo
o que devo
não devo
quanto devo

cansei
de controlar
me controlar
em rebanho

tive planos
soube
supus que soube
o que vinha
era engano

me fizeram crer
que o amor era posse
corrente
furada
cilada

me fizeram crer
que não devo crer
vai acabar
tudo acaba
não existiu
nada existe

me fizeram crer
que o problema era eu
ou você
ou ele, que te segue
me persegue

me fizeram quer
que era errado
declarar, era se entregar
e se entregar, era feio
faz mal
pro ego

me fizeram crer
no redor
no que dizem
o que pensam, o que acham
e desviei
do foco:
seu olhar

me fizeram crer
no perigo
que sufoca, abala, provoca
faz pensar
e se pensar, veja só:
não dá jeito:
afasta

não sei quem fizeram
mas fizeram
e fazem

agora, já tarde, me retiro
em retiro
e percebo, como nunca

desaba, desabo
não tão rápido
não tão simples
aos poucos, às beiras
se foi, me fui

agora, sem planos
às claras
sou livre
vi, percebi, aqui
você

não se tranque
nem tente
direi, mesmo assim
que te amo
te amo
e te amo

blue

lembro daqueles olhos azuis
olhos tão azuis que cegaram
num brilho de mar
num brilho de terra
de cima

lembro daqueles cabelos lisos
que acompanhavam sorrisos
enquanto penteava-o
por obrigação,
com prazer

lembro daquele homem velho
que deu-lhe conselhos
talvez sérios
talvez ternos
nunca saberei

mas sempre volto à lembrança
daqueles olhos azuis
azuis que cegaram
num brilho de mar
num brilho de terra
jamais esquecerei

sinfonia de silêncios

o estrondo quando passa
o horizonte quando chega
o aperto quando sente
o tapa quando acaba
silenciosamente ensurdecedor

o gozo quando alcança
o adeus quando acena
o sorriso quando tenta
a morte quando finda
silenciosamente ensurdecedora

o desejo quando nasce
o pensar quando voa
a carícia quando toca
o olhar quando fixa
silenciosamente ensurdecedor

o estupro quando cessa
a malícia quando morre
o beijo quando molha
a arte quando fala
silenciosamente ensurdecedora

aos ouvidos faltam pálpebras
desconfortante desespero
sob tantos vãos ruídos
não há som desassossego
há harmonia em calmaria
que transforma a revelia
em sinfonia de silêncios

faísca

um gesto, olhar ou cheiro
uma frase solta ou posta
por mais singela
põe em cheque as (in)certas convicções
gela alma autêntica e inquieta

distorções se injetam
a mais pura clareza se decompõe
não há interpretação que resolva
tudo desmorona

uma faísca vira incêndio
na esponja seca mórbida
será que a água impediria
a labareda que transborda?

conciliar dois ébrios sórdidos
nem se sóbrios estivessem!
a discordância sempre volta
e a revolta mostra a face

daí, tu faísca, vem e fisga
daqui, eu esponja, tomo e fico

sorte… o intento ser o mesmo
e na dança
o fogo
de incêndio
vira vela

e a luz, antes queima
agora ascende
calma e rente
e clareia

o fim em linha reta

ao pensar no ontem desmorono. a frase e o olhar secos e precisos foram sedativos. não quero-te mais. ouvi já indisponível. não sinto-te mais. foi pesadelo aquilo tudo. voltarei pra ele. e você fique só. deixe-me! éramos nós deitados? não sabia. não sei. já soube? não desejo-te. ojeriza-me. quero o chão agora. no ar não dá mais. homem tu não é. falta traço postura tom. me rendo neste ponto. sou o avesso de homem. você não é? qual seu tom postura traço? vem pra cá. veja-se em mim. não papeie, saia fora! vou-me, impreciso. onde vai, tão de pressa? oras, fugir de ti, que refuta-me! não refuto, vejo-me e temo-te.

eu leio kaplan!

escritores podem ser bons
precisam de ao menos um fã
tô preocupado é com a rima
e eu leio kaplan!

la la la la la la coração
êba, posso rimar com chão
mas qualquer pessoa sã
também sabe ler kaplan!

pode ser textinho ou soneto
o importante é que o façam
o cara é fã de monsueto
como não ler kaplan?

sabe nada, sua danada!
zueragem never ends
todos comem rabanada
do kaplan somos best friends

as mina pira nos versinho
élith xinga tudo elas
mas kaplan é moço doido
foge correndo delas

o que importa é os mamilos
calma calma calma, polêmica!
uns poemas são como grilos
foda-se a vida acadêmica
vixe, esqueci de rimar com kaplan…

mar&sol

ao apontar a lua
o mar apavora-se
suas ondas movimentam-se
num azul de transparências
beleza dura na imensidão

o sol no centro emana
luzes: em rajadas
cores: em peles opacas
prismas: em mentes dispersas

mar&sol quando juntam-se
transpassam o belo nome
brilham nos olhos
numa ardil sedução
transforma um cruzar de pernas
em volúpia tentação

trucidando a ideal fidelidade
mar&sol destroça as vísceras
seduz o incauto e, de reluz
foge das teias
e do alto da exuberância
ataca outras vítimas

pobres, homens!
jamais a alcançarão
jamais!

fez-se gênero

posto de pronto onde não pertencia
fez póstumo sua escolha
o nome, imposto, desfez
em vez de definir-se
auto destituiu-se
de posições e perturbações

não tratava-se de trejeito
era íntimo e explícito
no armário não cabia
sem disfarce ou demagogia
muito além do que parecia

a violência fez sua parte
aliou-se: família, vizinhos, o mundo
foi porrada de todos os lados
genitálias sob holofotes
sequelas inevitáveis
dores intermináveis
mas insistiu, porra!

bastada de humilhações
estancou o sangue
empoderando-se

da incerta convicção
estava certa da transformação
o dia em que sua fantasia
deixaria de ser novidade
pura e bela realidade
aceita sem disparidade