Feijoada

-Mulher, trouxe uma calabresa pra pôr no feijão da janta.
-Que bom, mas esse fradinho aí não engrossa o caldo. Tem outro?
-Deixa eu ver… Tem um resto de feijão preto, pode ser?
-Sim. Já aproveita e faz uma farofa.
-Fechou.

Corta pra nove da noite e a gente batendo um prato de feijoada.

Pelo menos era quarta-feira.

Crônica de uma cagada

Vivi até os 28 anos sem ter costume com elevador. Frequentava alguns, raramente, numa vida comercial. Às vezes em hotéis. No shopping. Na casa de parentes, amigos e tals.

Contato mesmo, no dia a dia, não tinha.

Agora tenho.

O prédio em que moro tem elevador e é frequente encontrar vizinhos saindo ou chegando de casa.

Vida diária, complexa e corrida. Classe média sofre.

Outro dia o vizinho do quarto andar subiu comigo. Limitei-me ao “boa noite” padrão, fruto de uma educação ocidental. Mas meu sorriso amarelo escondia uma vontade inenarrável de cagar.

Desculpe se o termo “cagar” soa grosseiro. Não conheço-o de outra forma. Entendo os falantes, mas tenho minha própria gramática.

E o anjo, ao entrar no recinto, fez o favor de esbarrar com a mochila, sem querer, no painel. E apertou todos os andares de 1º a 6º.

E eu, com uma vontade do caralho de cagar.

Daquelas de já atravessar a portaria com respiração contida. Andando como se estivesse numa passarela, fechando as pernas regularmente para evitar acidentes envolvendo cocô escorrendo pela perna.

AÍ,

O GRANDISSÍSSIMO

FILHO DA PUTA

APERTOU NA PORRA DE 6 NÚMEROS DIFERENTES

ME OBRIGANDO A SEGURAR O JATO DE MERDA QUE CONTINHA EM MIM.

DIFUDÊ.

Enfim. Vida que segue.

Fui abençoado e ao vaso sanitário cheguei a tempo.

¿Já agradeci hoje Duchamp pelo necessário enaltecimento do vaso sanitário?

Sobre o otimismo e as comparações inevitáveis

Em 1989, Enéas Carneiro foi candidato à presidência, tendo 360.561 votos, 0,53% do total, 12º colocado.

Em 1994, teve 4.671.457 (sim, quatro milhões, seiscentos e setenta e um mil, quatrocentos e cinquenta e sete fucking votos), 7,38% dos votos válidos, sendo o 3º colocado.

Em 1998, teve 1.447.090, contabilizou 2,14% dos votos válidos, 4º colocado.

Em 2000 tentou ser prefeito de São Paulo (quem nunca?) e 2002 elegeu-se deputado federal com maior votação da história para o cargo, ainda hoje não superada. Foram 1.573.112 votos. Reelegeu-se em 2006 e morreu em 2007.

Aí vem a comparação prometida no título: sempre tivemos – e provavelmente continuaremos a ter – candidatos extremistas, barulhentos e com algum apelo popular. Servem de piada à plateia e de ração aos raivosos (racistas, machistas, homofóbicos e criminosos no geral).

Só que lá no fundo, bem no fundo, na contagem dos votos, a perversidade permanece exceção e, parasita que é, à espreita da ignorância alheia.

E cabe também à nós (alô, professores) não permitir que a ignorância se propague e incentivar o pensamento crítico, qualificado, plural e democrático.

É, como dizem, trabalho de formiguinha. Otimismo ingênuo, talvez.

Mas ser otimista a luz da realidade é quase um ato revolucionário.

E necessário.

[Sonho de sábado para domingo]

PSOL, PCdoB, PDT, Rede e PSB, cada um com suas contradições, sentam em uma mesa pra gestar uma candidatura única. Melhor ainda se já lançassem uma lista aberta de candidatos aos legislativos e governadores, sem pudores. O PT pode estar na mesa, nada contra, tenho até amigos que são mas cada um no seu quadrado. Se não acharmos um “centrão” pra chamar de nosso, esses 5% jamais serão 25%. A realidade dói, mas precisa ser compreendida: poder tem tamanho e tempo de TV, não há outro caminho. É o que tem pra hoje. Mas essa mesa tinha que estar rolando tipo agora, em algum buteco desse país. Porque assuntos sérios são resolvidos em butecos, todos sabem. Assim evitaríamos possibilidades tristes, mas prováveis, de um segundo turno aterrorizador. Absolutamente aterrorizador.

Cruzes!

[/fim de sonho de sábado para domingo]

Sobre autoria e compartilhamento

Debate sério.

Quer dizer, nem tanto. É supérfluo até, mas enfim. Quero conversar.

E não, não é indireta pra ninguém. Me respeita.

Premissa: adoro textão. De verdade, se não for pra ler textão nem pago a internet. Gosto mesmo, leio mesmo, curto mesmo e compartilho mesmo. Se tiver “ver mais” eu clico e “continuar lendo” clico de novo.

E quando leio um texto, imagino a fala e o os trejeitos da pessoa que o escreveu. Poderia ser vício de professor, sempre atento aos trabalhos de alunos e alunas que às vezes copiam e colam no mais pleno descaramento. Mas não é o caso, já que essa “voz do autor” também se manifesta ao ler autores mais consagrados e que não conheço pessoalmente, nunca vi e muito menos ouvi. Enfim. É simplesmente ler sabendo quem escreveu.

E ciente de ser absolutamente igual a qualquer outra pessoa, acredito que todo mundo ouça as vozes. Então minha reclamação encontrará eco e talvez torne-se pontapé de uma revolução maior, quiçá gatilho para a tomada de Brasília e implantação do comunismo. ☭

Aos fatos: Mariazinha escreve as coisa. Nóis lê. Fica empolgado. Qué abraçá. Qué chorá junto. Tomá uns goró junto. Lê GRITANDO A PORRA TODA. Quase clica no botão compartilhar. Botão curtir. Botão amei. Botão hahaha. Botão glorificar de pé.

E, no final: “Ass. Joãozinho”.

Ué.

¿Não foi a Mariazinha que escreveu? Quem é esse Joãozinho? Onde vive? Como sobrevive? Do que se alimenta?

¿Não podia avisar antes? Apresentar? Pôr aspas? Dois pontos? Marcar no começo? Compartilhar o post original? Assim, sem preliminares? Nada? Nada? NADA!?!?!?

Não é plágio, ok. Os créditos estão ali, ok. Mas poxa, gente. Não dá. É tipo esse ponto de interrogação invertido que tô usando no texto. ¿Ajuda, né? Quem inventou manja dos paranauê. Eu sei que cada um escreve o que quiser na sua própria página e blá blá blá. Mas assuntos sérios como esse precisam ser expostos.

É isso.

Chega! Basta! Muda, Brasil!

Ass. Clarice Lispector

Crônica de uma prisão

Sábado, 7 de abril de 2018, estávamos a mulher e eu a caminho de um buteco qualquer para afogar as mágoas, quando no semáforo encostou um fiat uno ao lado. O motorista, um senhor de olhos marejados, disse:
– Moço, posso te fazer uma pergunta?
– Claro – respondi pensando tratar-se de alguma dúvida de percurso.
– Você é PT!?

Com o nível da polarização atual, confesso ter hesitado por um instante, poderia ser só mais um maluco. Mas naquele dia triste, foi a mesma polarização que forçou-me um posicionamento, mesmo que exagerado:
– Sim, sou PT! – a frase saiu quase que num grito.
Não satisfeito, esticou o pescoço e perguntou pra mulher:
– E você, é PT?
– Sou sim, com certeza.
Ele sorriu.
Um sorriso de alívio, talvez.
O semáforo já estava verde quando seguimos para lados opostos.
Lados opostos?

Sobre a preguiça e preocupações imbecis

Quem conhece minha casa sabe que tenho alguns livros. Quando mudei, os que se empilhavam no quarto da casa dos meus pais tiveram um respiro e passaram a habitar também uma sala, um avanço. Aliás, nas mesmas estantes e prateleiras, que trouxe comigo.

No primeiro dia de casa nova, a principal aflição não foi a cozinha sem armário, nem a sala sem sofá e muito menos o colchão no chão, sem cama.

A maior aflição foi olhar os livros desorganizados. Seria impossível uma mudança mantendo a ordem deles nas prateleiras. De modo que a lista de tarefas tinha como item inicial “organizar os livros”.

Porque aquele labirinto de lombadas, numa ordem quase orgânica, mas muito minha, era importante pra mim. Uma espécie de setorização da minha vida. Ou, ao menos, dos meus interesses.

São muitas fases e todas acompanhadas de livros. Quando estou na metade deles, já surge outro tema e mergulho novamente, abandonando – as vezes apenas deixando para depois – o tema anterior. Vêm novas caças nos sebos, outras visitas às livrarias e as trocas (tinha um site ótimo pra isso, preciso revisitar).

É como a analogia do pato…

(Não voam bem, mas voam. Não nadam bem, mas nadam. Não andam bem, mas andam. No fim, não fazem porra nenhuma bem, já que fazem um pouco de tudo.)

…só que com interesses. Teve a fase da ficção científica, do jornalismo, história, poesia, fotografia, monogamia, crítica de arte, programação, ocultismo (sim), biografias, gastronomia, educação, política, filosofia… Acho que deu pra entender.

Daí que sou um verdadeiro pato. Pato vermelho, por favor. Mas pato. Não me especializo em nada (bye bye mestrado), mas a variedade tem suas vantagens. Tô feliz e tals, não reclamo não.

Caralho. Pra variar desviei do assunto.

Enfim… Na verdade só queria escrever que fará dois anos da mudança (daqui a pouco vem outra), tenho cama, sofá e até armário na cozinha.

Mas nunca organizei os livros. Acho que até acostumei com eles assim. Ou não.

Tá uma zona.

Outro dia achei um Freud grudado no Paulo Coelho. Um São Cipriano roçando o Hobsbawn. Clarice atracada com Asimov. E, pasmem, um Proudhon colado no Marx.

Heresia pura. Um horror.

Mas prometo: na próxima mudança arrumo tudo. Os invejosos dirão que a preguiça sempre vencerá.

E estarão certos. A preguiça sempre vence.

Comédia da classe média 01

“Fulana é maravilhosa, super caprichosa. Mas está cobrando 300 reais pela diária! Fiz as contas, se ela fizer 20 diárias no mês ela vai tirar 6 mil! É mais do que eu ganho! Aí já é demais!!!!!!!11”

“Quanto você cobraria pra limpar a privada alheia?”

“Ãhn!?”

“Oferta e demanda, fia. Joga no Google…”

“…”

“…Ah, e me passa o telefone da Fulana.”

Crônica de um cancelamento

“Bem-vindo ao Serviço de Atendimento Folha de S.Paulo. Em que posso lhe auxiliar?”, escreveu Amanda, às 15h33min, assim que ingressei ao chat.

“Gostaria de cancelar minha assinatura, Amanda, por favor”. Pensei que sendo direto e conciso, talvez, em algum universo paralelo, evitasse o inevitável: as propostas.

“Boa tarde. Por gentileza, peço que aguarde um instante enquanto localizo sua assinatura”. Pronto, começou. Vai lá, querida. Procura minha assinatura no armário. Deve ser uma gaveta chamada clientes digitais. Tudo datilografado. Com firma reconhecida em cartório.

“Aguardando”, digo. Aprendi que nesses chats o melhor é sempre dar a última palavra. Deixar a conversa sempre ativa. Qualquer distração vira inatividade que vira perca de conexão.

“Por qual motivo deseja cancelar sua assinatura, Sr. Raphael?”

“Só assinei para ler as matérias online sem limites, mas descobri que assinantes UOL também possuem este acesso. E como já assino o UOL, posso cancelar a Folha sem perder nada”. De novo, a prepotência bateu e tive certeza que expressei-me tão diretamente que jamais abriria brecha para tentativas de convencimento.

Ledo engano.

“Compreendo, Sr. Raphael. No entanto, apenas assinantes Folha tem acesso ao jornal digitalizado”.

Ahã, dona Amanda. Super quero acessar a as páginas do jornal impresso dentro de um flash player (!?) xexelento, deliciando-me com estonteantes cliques e muito zoom! Seria um sonho!?

Mal comecei a digitar uma resposta mais polida (que o desabafo acima) e mais uma mensagem padrão deu as caras:

“Como forma de incentivo à sua permanência, gostaríamos de reduzir o valor das próximas seis parcelas do plano digital para apenas R$19,90 por cada uma delas. O que acha da proposta?”

“Realmente não tenho interesse, Amanda. Obrigado. Peço que proceda com o cancelamento.”

E o CTRL+C CRTL+V mais rápido do oeste apresentou-se novamente:

“E se fizermos melhor, Sr. Raphael?”

Sério?

“Podemos reduzir o valor das próximas parcelas do plano digital para apenas R$17,30, um investimento menor que R$0,60 por dia. Este valor especial não pesará em seu orçamento e tenho a plena convicção de que seu hábito de leitura irá aumentar ao ponto da Folha se tornar sua principal fonte de informação.”

Sugerir a Folha como principal fonte de informação só confirmou a vontade de cancelamento. Cruzes! Se soubessem que às vezes leio as notícias com o nariz tapado…

“Não, obrigado. :)”

Confesso que o emoji de sorriso não foi exatamente sincero. Dez minutos perdidos nessa porra de chat.

“Entendemos, mas antes de prosseguir…”

PUTA

QUE

O

PARIU.

“…com o cancelamento, gostaríamos de fazer uma oferta irrecusável. Podemos, nos próximos seis meses, reduzir o valor da sua assinatura digital para R$9,90. Ou seja, investirá apenas este valor simbólico e poderá fazer alterações em sua assinatura, pois nossos planos não possuem fidelidade. Fique conosco!”

“Caramba! Vou começar a pedir mais cancelamentos”.

Obviamente, ela não respondeu o comentário.

“Enfim, não aceito a proposta. Cancele, por favor.”

“Compreendo e respeito sua decisão [que anja! respeitando minha decisão!]. Um momento, por gentileza, enquanto cancelo.”

“Aguardo”, agora já esperando o sistema cair ou a conexão falar. Cruzei os dedos. As pernas. E os braços.

Essa mulher não digitou uma palavra sequer a conversa inteira. Tudo CTRL+C CRTL+V. Antes fosse um robô mesmo, assim não constrangeria meu xingamento.

“Lamentamos, sinceramente, por sua decisão, mas a entendemos e respeitamos. Já efetuei o cancelamento e seus acessos permanecerão disponíveis até 09/01, por conta do seu último pagamento.”

\o/ \o/ GLÓRIA GLÓRIA ALELUIA SENHOR MEU DEUS QUE ALEGRIA QUE FELICIDADE TÔ LIVRE PARA VIVER FORA TEMER \o/ \o/

Crônica de um nerd procrastinador

Ligo o computador para montar a prova do bimestre.
Nossa! Esta Área de Trabalho está muito bagunçada, arrumarei.
Péraí, ainda não fiz o backup da semana, farei agora.
Oxe… Que lenta a transmissão de arquivos, deixa eu fazer uma varredura.
Vixe, o HD está todo desfragmentado, melhor formatar.
Putz, posso aproveitar e já colocar um dual boot, né?

7 horas depois: caralho!
Meia noite e ainda não fiz a prova…

Só um passinho

I have a dream. Eu tenho um sonho. Sonho em descobrir quem foi o cobrador gênio que proferiu pela primeira vez a já célebre (e enfadonha) frase “só um passinho”. Sonho encontrá-lo por aí. De preferência, dentro de um ônibus bem lotado. No calor. Chovendo. Com as janelas fechadas. Cheio de gente de saco cheio e cheia de sacolas.

“Só um passinho.”

Essa frase brilhante se espalhou com tamanha destreza que chego a acreditar que estes bípedes portadores de síndrome do pequeno poder têm razão e, de fato, ônibus são como coração de mãe: sempre cabe mais um.

“Só um passinho.”

Porque, sem dúvidas, nos recusamos a dar mais um passinho porque não queremos trocar de encoxadas. Convenhamos: temos um baita trabalho pra conseguir encoxar alguém (ou ser encoxado) e, quando a intimidade está próxima de chegar, gritam a bendita frase, como se fôssemos uma quadrilha de festa junina na hora de trocar de par. Assim não dá. Relacionamentos líquidos têm limites: queremos vínculos!

“Só um passinho.”

Afinal, nosso objetivo secundário (lembrando a prioridade das encoxadas) é atrapalhar a passagem de outros passageiros. É maldade mesmo. Freud disse. Nietzsche também. Somos maus, pô. É super possível abrir espaço para aquele colega que pretende chegar à porta nos dois segundos que lhe restam, após perceber segundos antes da parada que (creiam!) chegou seu ponto. Se não der para passar pelo lado, vai por cima, “só um pulinho”, talvez. Ou por baixo, abre as pernas, quem sabe rola um chamego? Super possível, mas somos inerentemente maus. Queremos atrapalhar todo mundo mesmo.

“Só um passinho.”

Até porque, não importa se fomos até o ponto final para viajar confortavelmente. Nossa obrigação ética (moral e o escambau) é abrir alas para o amiguinho que pegou o bonde andando e quer sentar na janelinha. “Só mais um degrau pra fechar a porta”, diz, sorrindo, o simpático motorista. Homem de bem (mulheres são raras, por que será?), jamais andaria com as portas abertas. Preza pela nossa segurança. Pena que no degrau de cima já encontram-se 234 pessoas (talvez 233, estava meio atordoado) e não dá pra subir. “Só saio quando conseguir fechar a porta”. Mas não é um gentleman este motorista? Cabe aos passageiros se entucharem só mais um pouquinho. Quem precisa de dignidade?

Água corrente

A gata quer água corrente. Sequer olha para sua tigelinha sempre cheia de água fresca. Vai ao tanque. Discreta? Jamais. Miados e miados depois, seu escravo, aquele humano que cuida dela, aparece para ver do que se trata. A cena é autoexplicativa. Explícita. “Abra a porra da torneira e saia daqui”. Resta apenas uma dúvida: satisfaço este desejo e foda-se o planeta ou deixo-a lá, regurgitando no chão, temendo sua morte lenta e dramática por sede e inanição.

Nem hesito: foda-se o planeta.

Carta de divórcio (ao cigarro, é claro)

Prezado cigarro,

Enquanto dou o derradeiro trago – imaginário, pois você não está mais aqui – inicio esta missiva. Olho para o chão e observo: última bituca (talvez penúltima). Encarando-me com olhos não de presente, mas passado. Acabou comigo e meu ego. Deixe o ponto final para mim. Suplico.

Ciente da minha incapacidade de resistir, optei pelo mais drástico. O fim registrado, em cartório. Extrajudicialmente notifico-te, meu pedido de divórcio. (Ir)revogável.

Depois de tanta fumaça, conversas intermináveis e trovões, os amarelos dentes da primavera viraram, do avesso. E a brisa boa, antes tesão, agora é engasgo. Desce ruim.

Tentei parar, mas nem a pinga, nossa companheira de prosa e tédio, deu conta da ausência. Ter-te em minha boca era consolo de tudo. De todos.

Teu tabaco, ali, com tantas outras substâncias químicas, ludibriava-me. E nem a massiva advertência, no teu rótulo, alertando-me da finitude, impediu-me de tragar-te até o fim. De mim.

Teu cheiro então, é foda. Não sai das mãos. Do corpo. Das roupas. Não tem banho que tire. E sei, por outros vícios, que cheiro fica. Impregna. Fecho os olhos, respiro fundo e bingo. Sinto.

Disseram-me na sarjeta para substituir um vício por outro. Ocupar aquele espaço, vazio. Relutei, confesso. Mas tem jeito? Morro aos poucos por ti e à partir de amanhã, caso aceite esse divórcio sem litígio, partirei, em busca de novos delírios.

Sobre a foto do menino morto

Normalmente, ignora-se as capas da Veja e tudo bem.
Revistinha de merda é revistinha de merda.
Toca o barco.

Soube da foto da criança morta.
Até parei de ler alguns feeds para evitar o desgosto de ver a cena.
Fui ajudado pelos amigos, que não compartilharam aquilo.
É a vida real? Claro.
Não devemos fugir da realidade? Jamais.
Mas esse tipo de imagem mata-me aos poucos.
Prefiro evitar.

Eis que a maldita revista coloca a foto em sua capa.
Espalha essa porra pela cidade.

Não pude evitar.
Morro aos poucos.

Uma dor

Mal o sinal soara e os alunos estavam em suas salas.
Menos ele.
Vinha decidido em minha direção.
Tia, tô com uma dor, liga pra minha mãe.
Dor onde? Dor de cabeça?
Barriga. É dor de barriga.
Respire, vá com calma ao banheiro, lave o rosto e venha até minha sala que tentarei falar com alguém na sua casa.
Uma vizinha viria buscá-lo, era a segunda opção de emergência no prontuário.
Tia, voltei.
Sua vizinha vem te buscar logo logo, você está melhor?
Não, tia. Tem que ser minha mãe. Ela tem que me buscar. Minha mãe.
Ela está trabalhando, não tem como vir agora.
Se não for minha mãe, tia, não precisa.
Você está passando mal ou não?
Pausa.
Aqueles olhos encheram-se d’água.
É saudade da minha mãe, tia. Eu quero minha mãe. Quero abraçar ela.
Pedi um minuto.
Dois.
Três.
Fui informada que o aluno morava com a avó.
Pelos relatos mais detalhados, vida dura.
Consegui falar com a mãe.
Expliquei a situação e passei o telefone.
Com os olhos cerrados, segurando uma lágrima que não consegui, ele apenas ouviu a mãe no outro lado da linha.
Ao fim, suplicou.
Tô com saudade, mãe. É só isso. Vem me buscar. Quero te ver. Tô morrendo de saudade.
A conversa parecia ter encerrado e assumi novamente a ligação.
A mãe, agora com voz embargada, garantiu estar à caminho.
Urgência é urgência.
E aquela dor, na tenra idade, não era dor.
Era amor.
De mãe.
Saudade.